Resquícios do autoritarismo

 

“O erro da ditadura foi torturar e não matar”. A frase de Bolsonaro foi dita quando o ex-presidente escarnecia das atrocidades cometidas pela ditadura militar, sem jamais imaginar que o feitiço poderia se voltar contra o feiticeiro. Principalmente para aqueles que perderam seus entes queridos durante a pandemia da Covid-19 – crimes que começarão a ser investigados pelo STF –, esses 27 anos de prisão são muito pouco. Ainda mais numa sala individual com ar condicionado, frigobar, televisão e banheiro privativo. E com irrestrita disponibilidade de atendimento médico. Segundo o livro “Direito à memória e à verdade”, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, foram 475 mortos e desaparecidos durante os anos de chumbo, por sequestro, cárcere privado, tortura e assassinato. A ex-presidente Dilma Roussef tinha 22 anos quando foi presa pela Operação Oban, estrutura clandestina formada por policiais e militares que prendiam ilegalmente, torturavam, matavam e despareciam com os cadáveres. Stuart Angel Jones, filho da estilista Zuzu Angel, foi um dos desaparecidos. A Oban originou o DOI-Codi, a mais cruel policia política da ditadura, comandada por Brilhante Ustra, o torturador mor guru de Bolsonaro, de quem Dilma foi vítima. Já o princípio básico do bolsonarismo é: a lei é feita para os outros, nunca para eles próprios. Enquanto corpos foram dilacerados nos porões – e até hoje ninguém foi castigado por isso –, Bolsonaro vem com mimimi. Ouve vozes. Augusto Heleno, ex-braço direito de Silvio Frota, que tentou dar um golpe linha dura em Geisel, sofre de Alzheimer e o ex-ministro da Justiça, Anderson Torres, usa remédios antipsicóticos. Passamos quatro anos sob o jugo dessa gente! Bolsonaro só foi julgado pelos crimes que se pôde provar, de tentativa de destruir a nossa democracia. Passou por um processo legal, transparente, observado por milhões de brasileiros através da imprensa livre – os mesmos brasileiros que desconheciam a barbárie cometida pela ditadura.  Não é diferente para os generais condenados. Todos tiveram amplo direito de defesa com advogados de elite, estão em salas em instalações militares com banheiro e frigobar. Foram detidos sem algemas, com discrição. Reclamam do quê?  Do longo tempo que passarão sem liberdade para ir e vir? Quem mandou se deixarem levar pelo saudosismo da ditadura? Eles são capazes de imaginar o que poderia acontecer se as regras fossem as mesmas da época que eles queriam tanto resgatar? Terão coragem de continuar a repetir que bandido bom é bandido morto? Ainda convivemos com resquícios do autoritarismo, quando deputados foragidos e presos continuam a receber seus honorários, por exemplo. Ou com o vazamento ao bolsonarista Paulo Figueiredo da reunião entre Alexandre de Moraes, José Múcio e Tomás Paiva, com pedidos de clemência e discrição por este último aos quatro estrelas detidos. Ou quando tentam livrar a barra dos condenados. O jogo oscila e não virou 100%. Todo cuidado ainda é pouco.