Sangria, a cloroquina do século XIX

 


A sangria já foi a cloroquina do século XIX. Isso é o que demonstra o livro “Classificados da Corte, o cotidiano do Rio de Janeiro joanino a partir dos anúncios de jornal”, que o historiador João Victor Pires lança essa semana. 

“Quem quiser comprar um cabra por nome João, 18 a 20 anos, barbeiro sangrador, fale com sua senhora na Rua da Quitanda” está entre os 9.211 anúncios publicados em 1.610 edições da Gazeta do Rio de Janeiro entre 1811 e 1820.

Além de tratar o ser humano como mercadoria, o texto evidencia a importância dada à sangria em detrimento das vacinas, em uma época que a varíola dizimava a população. Os anúncios de escravizados barbeiros e sangradores mostram como a confiança na medieval técnica terapêutica era mais valorizada que os métodos científicos. O povo acreditava que a doença era resultado de castigo divino ou até feitiço, e que não seria uma vacinazinha que salvaria suas vidas.

A bem documentada pesquisa de Pires conduz os leitores ao cerne da vacinação joanina. Ele constatou, por exemplo, que os escravizados eram a maioria dos vacinados. Não por questões humanitárias, e sim pela garantia do lucro com o comércio escravocrata. E, para sustentar sua tese, o autor argumenta no Globo: “Basta notar os anúncios de jornal que informavam o ofício do escravizado. Se escreviam isso, significa que poderia aumentar a possibilidade de interesse.”

Pires analisou o periódico - que representava os interesses do Estado e era vinculado ao governo  - por um ano e meio. O conteúdo ilustrou sua tese de mestrado em História Moderna e Contemporânea no Instituto Universitário de Lisboa. Segundo ele, o mercado de escravos representava 16% dos anúncios – o comércio de imóveis somava 20% e o de livros, 12%.     

“Não tinham escolha. Quase 64% dos vacinados no período analisado eram escravos. Era importante porque ter escravizados morrendo por doença representava prejuízo aos traficantes transatlânticos ou a quem os comprava”, completa.

E, para ajudar a exemplificar a poder dessa categoria no Brasil de D. João VI, foi o traficante de escravos Elias Antônio Lopes quem doou ao monarca português o palácio da Quinta da Boa Vista, onde a família imperial se estabeleceu. Sabe-se lá em troca de que favores...

Assim como hoje, na época havia grande debate sobre a eficácia das vacinas, bem demonstrado pela Revolta da Vacina, de 1904, quando a população ia contra a obrigatoriedade de vacinação contra a varíola. A maior diferença, agora, é a falta de vacinas para quem mais as deseja. Mas essa já é uma outra história...       

Comentários

  1. Sonia Benevides
    Talvez o medo de vacina , injeção venha das evocações destes tratamentos.

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  2. Maria Christina Monteiro de Castro
    Li a matéria com o maior interesse. Que competência tem o ser humano para escapar à dor da realidade, né? para o bem e para o mal....
    · Responder · 1 h
    Celina Côrtes
    Maria Christina Monteiro de Castro É mesmo!

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