A ganância evangélica

 

Às vezes chego a duvidar que o Brasil seja mesmo um país laico. Semana passada, episódios ocorridos entre líderes evangélicos fariam corar qualquer ateu. A começar pela criação, por Lula, do Dia Nacional da Música Gospel.

Sabemos que o presidente colhe os frutos da falta de afagos a esse público, de considerável representatividade no eleitorado. Vá lá, encontrou esse caminho. Que deu o que falar...

Quarta-feira, no lançamento da data, o deputado federal Otoni de Paula (MDB) rasgou-se em elogios a Lula, sem deixar de criticar seu antecessor, de cujo governo foi vice-líder. Admitiu ter errado quando associou a esquerda à pedofilia, enquanto chamou o capitão de "arrogante" com as igrejas.

“Eu apenas quis mostrar que a igreja não pertence nem ao bolsonarismo nem ao petismo”, despistou.

Claro que a participação gerou ciumeira. Sóstenes Cavalcante - aquele que criou o projeto de criminalizar meninas que fizessem aborto após serem estupradas -, desdenhou: “No lugar dele eu não iria, teria pedido para outro ir no meu lugar. Não precisava exagerar nas palavras”.

Outro que abusou do veneno foi o pastor Malacheia. “Até pouco tempo Otoni chamava Lula de ladrão e corrupto. Estranho, não?” E na época do projeto de Sóstenes, o pastor disse que quem defende estuprador é Lula, o PT e a esquerda. 

Na verdade, as raposas evangélicas atribuem a aproximação entre Otoni e Lula à indicação de Wanderson Monteiro à superintendência do DNIT...Ô boca, com diria o saudoso colunista Tutty Vasques...

Em entrevista ao Globo após o evento, Otoni alega que Lula e o PT “foram consumidos” por uma pauta identitária oposta aos evangélicos. O fato do presidente permitir que seus ministros defendam o aborto, por exemplo, “cria um abismo imenso” para os evangélicos, aponta o deputado.

Ou seja, não basta Lula dizer que é contra o aborto. Ele tem de interferir na opinião de seus ministros...

E explicou melhor o que chamou de arrogância do capitão: “Ele achou que dizer vote em fulano bastava. É preciso mais humildade com as lideranças evangélicas”, prega Otoni.

Quer dizer, pouco importa aos evangélicos se somos ou deixamos de ser um país laico. O que vale é que suas pautas sejam atendidas pelo governo, que passou a viver sob o garrote da bancada evangélica para ter governabilidade.

Independente das picuinhas, no cômputo final fica a constatação: algo começa a mudar na orientação de Otoni em relação a seu rebanho, que não é pequeno.

Resta saber até onde vai a resistência de outros líderes evangélicos ao presidente, sobretudo agora em que o Inelegível sucumbe cada vez mais às suas próprias presepadas e tem sido duramente criticado até pelos antigos aliados.