Duelo entre ficção e realidade

Albert Camus (1913-1960)
"Que todas as festas públicas, jantares em tabernas, cervejarias e outros locais de entretenimento comum sejam suspensos até novas ordens". A determinação está em “Um diário da peste”, lançado por Daniel Defoe em 1772. A obra narra a peste bubônica de 1665, em Londres, descrevendo eventos sinistros que lembram nossas próprias respostas ao choque inicial e à voraz propagação do coronavírus. No livro, famílias inteiras relatam epidemias em progressão, dos primeiros alertas de que algo não ia bem aos momentos mais cruéis, até o retorno à "normalidade". É um registro, portanto, de que já passamos por isso.
A ficção aborda cenários macabros ocorridos durante as pandemias que se abateram sobre o planeta no passado e deixaram profundas marcas sobre a humanidade. Tal qual deve ocorrer agora, com efeitos ainda desconhecidos e impossíveis de ser previstos. Algo semelhante se deu em 1947, com o impactante “A Peste”, de Albert Camus, onde Oran, na Argélia, permanece fechada por meses enquanto uma doença dizima seu povo, como de fato aconteceu na vida real. Os paralelos com nossa atual situação são constantes. No início, líderes locais relutam em reconhecer os sinais precoces que vêm dos ratos morrendo pela doença. "Os pais de nossa cidade estão cientes de que os corpos em decomposição desses roedores constituem um grave perigo para a população?", pergunta o colunista de um jornal.
A gripe espanhola, por sua vez, que exterminou cerca de 50 milhões de pessoas em 1918, após os 10 milhões de mortos na Primeira Guerra Mundial, foi a fonte de inspiração de Katherine Anne Porter para seu romance “Cavalo pálido, pálido cavaleiro”, de 1939. "É terrível... Todos os teatros e quase todas as lojas e restaurantes estão fechados, e as ruas estão cheias de funerais o dia todo e ambulâncias ...”, diz um trecho, quase uma descrição fiel deste início de 2020.
Tão ou mais assustador e atual é acompanhar a descrição que Ken Follet faz da arrogante juventude nazista que começa a florescer antes da Segunda Guerra Mundial em “O inverno do mundo”. "Ouviu mais uma vez o som rascante da voz cheia de ódio quando, em seu discurso no Parlamento, o líder alemão havia desprezado a democracia. Estremeceu com a lembrança dos focinhos sujos de sangue dos pastores-alemães que haviam dilacerado Jörg com a cabeça enfiada num balde". A cena nazista lembra os bolsomínions e seu líder, menos violentos, porém. Assim como no Brasil de hoje, eles demoraram, ou talvez nem se deram conta, do monstro que os inspirava...E agora, a realidade vai superar a ficção ou a ficção vai superar a realidade? 



Comentários

  1. O que nos resta é manter a lucidez, a memória e elaboramos na análise dos fatos saídas menos sofridas e mais inspiradoras. O que temos é trabalho árduo pela frente.
    BRAVO!!! belo texto.

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  2. WOW! Pequena-grande aula de História e Literatura no seu texto. Sou uma Ken Folletiana e ler essa cena do volume 2 me causou raiva e asco. São os mesmos sentimentos diante dessa ficção-realidade......

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